por Ruy Filho
Foto de Ekaterina Tsvetkova |
Durante
um voo, uma ave pode decidir mudar de direção sem qualquer aparente estímulo.
Isso não significa aleatoriedade, mas a percepção de um instante por um viés
inesperado e genuíno. Então, o voo pode ser compreendido não como trajetória, é
ele mais a descrição de decisões instintivas que, ligadas umas às outras, tomam
o instante percorrido como sendo a forma de uma suposta linearidade. Diferente do homem, cujo sentido de caminho é
dialético, porém provável, limitado que está aos desenhos provocados pela moral
e ambiência sociocultural. Assim, o percurso do homem revela-se pela leitura
dos desdobramentos consequentes às decisões, nunca somente no trajeto em si.
Cabe, ainda, um terceiro, uma espécie híbrida: o artista. Humano por definição,
coloca-se frente ao mundo e às emoções feito ave. Contaminando-se de desejo
pelo inesperado, foge ao provável e torna a necessidade de criar o estímulo
necessário para provocar seus próprios desvios. Tentar entender um artista é
tão impossível e inútil quanto confirmar seu percurso. Tchekhov sabia disso. E,
em A Gaivota, a instabilidade dos
personagens expõe a infinitude de seus desejos em se afirmarem escritores e
atrizes, artistas, e seus desesperos para abandonarem o chão, os limites, e
voarem.
Yuri
Butusov compreendeu magistralmente a necessidade de tornar os atores aves, e
por eles construiu um espetáculo aberto e sem movimentos objetivos
exageradamente literais, tão comuns às montagens tradicionais. Optou,
acertadamente, pelas variações dos ângulos múltiplos. As cenas repetem-se,
reafirmam-se em estímulos inesperados, levando o espetáculo a ampliar a
experiência do espectador, como se assistisse ao instante em que o pensamento
decide mudar de rota. São variações do mesmo acontecimento, e do humano,
possíveis de serem reveladas somente na poética de uma urgência. Por não haver
solução única, a repetição amplia a consciência da impossibilidade. Há um
borrar entre o fato e o indivíduo, e duvidar sobre quem determina quem conduziu
a uma estratégia cênica eficiente e vibrante, ora irônica, divertida, ora
trágica, silenciadora. Torna o teatro, por fim, o instrumento mais próximo do
voar ao homem.
A
montagem de Butusov amplia ainda mais a máxima contida na peça original de
confrontar o entendimento e o prazer. Por muitos instantes, o entendimento se
efetiva pela sobreposição acumulativa de sentidos, até mesmo opostos, que
partem antes das experiências estético-narrativas, quando e durante as
construções das cenas e personagens. A complexidade conceitual das escolhas
simbólicas se dissolve ao assistir e ao quanto se coloca fácil o convívio com
tamanha profundidade. Não é preciso conhecer Tchekhov e A Gaivota, apenas se permitir enveredar no fascinante universo de
cada quadro e imagem trazidos ao espectador, enquanto a cena é construída e
finalizada abertamente, sem maiores mistérios. É por essa exposição máxima que
o prazer sustenta o interesse pelo entendimento, e o espetáculo se confirma uma
experiência absolutamente transgressora.
Parte da
transgressão se faz na dissolução do cotidiano como reconhecimento de uma
narrativa comum. Como se organiza, o espetáculo subverte a iconoclastia
abandonando os ídolos e ícones, voltando ao próprio homem como representação
necessária de urgente deformação. Não é, portanto, a sociedade quem corrói o
ser, mas o ser quem se desfaz ao se querer artista. Na impossibilidade de voar,
a ave se protege do abandono e da solidão ampliando sua presença como algo
violento e arriscado. E o mesmo se dá aos artistas.
Butusov
e seu talentoso elenco sobrevivem ao cotidiano exauridos por uma Rússia cada
vez menos possível de representação, em pleno esfacelamento iconoclasta e
deformidade dos princípios estruturais. Tudo se torna algo próprio de
desconhecimento. Talvez por isso, a violência cênica ultrapasse o grito e o
aparente desespero físico e se firme mais como risco estético. A Gaivota não é um manifesto ou
tentativa de entendimento seja lá do que for. Ao contrário. Expõe a solidão e o
abandono do homem no instante de sua improvisação, em pleno voo da história.
Não se sabe o que será daqui a duzentos mil anos, disse Tchekhov. Talvez nem
tenhamos mais aves. Talvez nem artistas. Talvez todos estejamos aprisionados ao
chão com armas nas mãos apontadas para as próprias cabeças. Ou, talvez,
tenhamos conseguido aprender a voar. Por
enquanto, como possibilidade, temos o teatro e os balaços de corda. E o
convívio com artistas grandiosos e genuínos como Butusov pode levar o homem a
ser provocado a sentir o inesperado, a mudar de direção, trocar o foco e,
simplesmente, ser diferente e seguir para onde for, para onde der, com a única
certeza de nunca mais igual.
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