sexta-feira, 6 de março de 2015

A Gaivota: a transgressão do voo

por Ruy Filho
 
Foto de Ekaterina Tsvetkova


Durante um voo, uma ave pode decidir mudar de direção sem qualquer aparente estímulo. Isso não significa aleatoriedade, mas a percepção de um instante por um viés inesperado e genuíno. Então, o voo pode ser compreendido não como trajetória, é ele mais a descrição de decisões instintivas que, ligadas umas às outras, tomam o instante percorrido como sendo a forma de uma suposta linearidade.  Diferente do homem, cujo sentido de caminho é dialético, porém provável, limitado que está aos desenhos provocados pela moral e ambiência sociocultural. Assim, o percurso do homem revela-se pela leitura dos desdobramentos consequentes às decisões, nunca somente no trajeto em si. Cabe, ainda, um terceiro, uma espécie híbrida: o artista. Humano por definição, coloca-se frente ao mundo e às emoções feito ave. Contaminando-se de desejo pelo inesperado, foge ao provável e torna a necessidade de criar o estímulo necessário para provocar seus próprios desvios. Tentar entender um artista é tão impossível e inútil quanto confirmar seu percurso. Tchekhov sabia disso. E, em A Gaivota, a instabilidade dos personagens expõe a infinitude de seus desejos em se afirmarem escritores e atrizes, artistas, e seus desesperos para abandonarem o chão, os limites, e voarem.

Yuri Butusov compreendeu magistralmente a necessidade de tornar os atores aves, e por eles construiu um espetáculo aberto e sem movimentos objetivos exageradamente literais, tão comuns às montagens tradicionais. Optou, acertadamente, pelas variações dos ângulos múltiplos. As cenas repetem-se, reafirmam-se em estímulos inesperados, levando o espetáculo a ampliar a experiência do espectador, como se assistisse ao instante em que o pensamento decide mudar de rota. São variações do mesmo acontecimento, e do humano, possíveis de serem reveladas somente na poética de uma urgência. Por não haver solução única, a repetição amplia a consciência da impossibilidade. Há um borrar entre o fato e o indivíduo, e duvidar sobre quem determina quem conduziu a uma estratégia cênica eficiente e vibrante, ora irônica, divertida, ora trágica, silenciadora. Torna o teatro, por fim, o instrumento mais próximo do voar ao homem.

A montagem de Butusov amplia ainda mais a máxima contida na peça original de confrontar o entendimento e o prazer. Por muitos instantes, o entendimento se efetiva pela sobreposição acumulativa de sentidos, até mesmo opostos, que partem antes das experiências estético-narrativas, quando e durante as construções das cenas e personagens. A complexidade conceitual das escolhas simbólicas se dissolve ao assistir e ao quanto se coloca fácil o convívio com tamanha profundidade. Não é preciso conhecer Tchekhov e A Gaivota, apenas se permitir enveredar no fascinante universo de cada quadro e imagem trazidos ao espectador, enquanto a cena é construída e finalizada abertamente, sem maiores mistérios. É por essa exposição máxima que o prazer sustenta o interesse pelo entendimento, e o espetáculo se confirma uma experiência absolutamente transgressora.

Parte da transgressão se faz na dissolução do cotidiano como reconhecimento de uma narrativa comum. Como se organiza, o espetáculo subverte a iconoclastia abandonando os ídolos e ícones, voltando ao próprio homem como representação necessária de urgente deformação. Não é, portanto, a sociedade quem corrói o ser, mas o ser quem se desfaz ao se querer artista. Na impossibilidade de voar, a ave se protege do abandono e da solidão ampliando sua presença como algo violento e arriscado. E o mesmo se dá aos artistas.


Butusov e seu talentoso elenco sobrevivem ao cotidiano exauridos por uma Rússia cada vez menos possível de representação, em pleno esfacelamento iconoclasta e deformidade dos princípios estruturais. Tudo se torna algo próprio de desconhecimento. Talvez por isso, a violência cênica ultrapasse o grito e o aparente desespero físico e se firme mais como risco estético. A Gaivota não é um manifesto ou tentativa de entendimento seja lá do que for. Ao contrário. Expõe a solidão e o abandono do homem no instante de sua improvisação, em pleno voo da história. Não se sabe o que será daqui a duzentos mil anos, disse Tchekhov. Talvez nem tenhamos mais aves. Talvez nem artistas. Talvez todos estejamos aprisionados ao chão com armas nas mãos apontadas para as próprias cabeças. Ou, talvez, tenhamos conseguido aprender a voar.  Por enquanto, como possibilidade, temos o teatro e os balaços de corda. E o convívio com artistas grandiosos e genuínos como Butusov pode levar o homem a ser provocado a sentir o inesperado, a mudar de direção, trocar o foco e, simplesmente, ser diferente e seguir para onde for, para onde der, com a única certeza de nunca mais igual.



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