A encenação como rascunho de reescritura circular do texto teatral
por Welington Andrade
Escrita em 1896, A Gaivota, de Anton Tchekhov, denominada pelo próprio autor de
“comédia em quatro atos”, trata de uma série de impasses e de crises que estão
na base conceitual e formal de nossa modernidade crítica. O tema predominante é
a frustração que os personagens experimentam nas duas frentes paralelas e
interdependentes que alinhavam as ações transcorridas no palco: a vida amorosa
e a vida artística. Há dois escritores e duas atrizes em cena, fadados ao
fracasso pessoal e/ou profissional. Em torno deles transitam outras figuras
cujas micro-histórias reverberam ou potencializam o que é vivido pelo quarteto
central.
As cisões – que se dão entre
a elaboração de novas formas artísticas ou a continuidade dos dados da
tradição, entre “amar sem esperança” ou “mergulhar nos redemoinhos da vida”,
entre viver a solidão individual tão própria do gregarismo do campo ou
fundir-se espiritualmente com as multidões das grandes cidades, como Moscou ou
Gênova –
constituem as principais linhas de força da tão percuciente quanto dolorosa
análise que Tchekhov empreende da crise da subjetividade vivida pelo homem
moderno, cuja experiência individual é submetida a anulações e destruições
ininterruptas, contínuas. Para a qual o suicídio final de Treplev é o último
dos desenganos.
Eis que, então, a encenação de A Gaivota por Yuri Butusov priva do
mesmo caráter de reescritura do texto original perseguido e realizado por
Pierre Menard, o famoso protagonista do conto de Jorge Luis Borges. Também o
diretor russo não se vergou ao prazer do anacronismo, “atraído por ideias
primárias de que todas as épocas são iguais ou diferentes”. Antes disso, as
formas teatrais a que Butusov deu luz lhe são originais e próprias, embora
absolutamente coincidentes com as formas previamente concebidas por Anton
Tchekhov.
O texto original tchekhoviano está
aqui não integral, mas integramente preservado. Pela via do exercício de
mimese? Decerto que não. Pois A Gaivota
do Teatro “Satiricon” denominado A. Raykin sequer é exercício (essa também uma
ideia primária que tanto fascínio tem exercido sobre artistas contemporâneos).
O grande poder de comunicação que o espetáculo estabelece com a plateia reside
em sua qualidade de rascunho permanente, rasgado no exato momento em que alguma
forma possa se cristalizar e se tornar admirável. Direção, interpretação,
cenografia e música, assim, concorrem para fazer do texto uma ruína circular
(novamente Borges), inesgotável em sua capacidade de gestar o novo através do
atávico, do pré-existente.
As distorções – como seria de
se esperar –
causam estranhamento, mas estão todas elas a serviço da engenhosa – talvez mais
apropriadamente industriosa – conversão das versões do texto em versões da
escritura cênica. O lirismo das falas originais (a partir de algum momento, não
será mais possível falar em originalidade) transforma-se em gritaria,
acompanhada por música muito alta, desagradável aos ouvidos. Butusov aqui tem a
incrível capacidade de nos apresentar um Tchekhov altissonante e tonitruante,
um meio-irmão de Zeus. O bucolismo da vida rural é retratado em meio a muita
sujeira, muito detrito, muitos elementos desperdiçados em cena (sobretudo
papéis rasgados e água derramada – elemento recorrentemente explorado em
seu volume incontido, disforme). Sobre este aspecto, vale registrar, então, o
impactante trabalho de design cenográfico assinado por Alexander Shishkin.
A interferência regular do próprio
diretor em cena, engrossando o coro de uma energia feérica, excitada,
delirantemente pop, marca o caráter de ensaio que também advém das inúmeras
cenas que se repetem com atores e inflexões diferentes. O importante é não se
deixar aprisionar por nenhuma forma já conhecida, a fim de que não somente o
não-Dumas que habita Treplev como também o não-Turgueniev que mora em Trigorin tenham
plenas condições de existir cenicamente.
Mas se o teatro de Butusov é um
teatro de ardor e de excessos, ao espectador atento é possível também usufruir
aqui e ali de algumas irrupções de subjetivismo poético e de contenção. A
ambiência pianística de muitas cenas, o uso de uma precária máscara de tosco
papel e a percepção de que o histrionismo lancinante muitas vezes dissimula o
mais pungente do patético são algumas delas.
Errática, rudimentar e anômala, a
presente encenação de A Gaivota
constitui um misto de método e loucura disposto à criação de uma experiência de
impossibilidade ficcional exemplar: nela nós continuamos sendo nós mesmos, mas
atingimos o centro de irradiação do universo tchekhoviano mediante a ocorrência
de nossas próprias experiências pessoais.
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